Em meio a exercícios nas ilhas do Caribe, mobilização de milícias e reforço de tropas na fronteira com a Colômbia, Caracas ajusta sua doutrina para o “conflito híbrido”: deter incursões externas e conter guerrilhas transnacionais, enquanto a temperatura política sobe com o avanço de meios norte-americanos na região.
A semana começou com sinais claros de que a crise de segurança no Caribe entrou em uma nova fase. De um lado, os Estados Unidos ampliaram voos de bombardeiros estratégicos e fortaleceram a presença de caças e navios de guerra; de outro, a Venezuela respondeu com exercícios, deslocamento de tropas e um discurso de “resistência prolongada” que combina forças regulares, milícias civis e controle de bastidores do poder para manter a governabilidade interna. Na narrativa do Palácio de Miraflores, “qualquer ataque” acionaria uma resistência armada em várias camadas; a mensagem ecoa em pronunciamentos públicos de Nicolás Maduro desde setembro.
O quadro regional. Em agosto e setembro, Washington reforçou a campanha antinarcóticos no Caribe — com destróieres e o envio de jatos adicionais a Porto Rico —, ao mesmo tempo em que realizou ações letais contra embarcações suspeitas, incluindo a que resultou em 11 mortos. Em outubro e novembro, voos de B-52 e B-1 próximos à costa venezuelana elevaram o risco de correlação de forças volátil e de erros de cálculo. A justificativa oficial dos EUA segue atrelada ao combate ao tráfico; Caracas lê a movimentação como “preparação para agressão”.
No caráter híbrido da resposta bolivariana, dois vetores se cruzam: a defesa do litoral e das ilhas estratégicas (como La Orchila) e a contenção de grupos irregulares de origem colombiana na faixa de fronteira. Em meados de setembro, o governo anunciou “frentes de batalha” em 284 zonas do território, com reforço de efetivos especialmente no arco costeiro e no limite ocidental. O pacote inclui exercícios combinados de Exército, Marinha e milícias populares, com grande ênfase em logística e defesa antiaérea.
Miraflores e as milícias. Desde agosto, Maduro vem sinalizando a mobilização de milhões de integrantes da Milícia Bolivariana como retaguarda da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB), em um arranjo que, segundo a versão oficial, busca dissuasão e capilaridade territorial — uma típica sinalização ao mercado político interno de coesão e “prontidão total”. A leitura de aliados é que a rede de voluntários oferece redundância em caso de sabotagens, bloqueios ou cortes em cadeias de comando. Registros de campo mostram filas de alistamento em Caracas e estados vizinhos.
Guerrilha no tabuleiro. A fronteira venezuelano-colombiana segue tensionada por disputas entre o Exército de Libertação Nacional (ELN) e dissidências das antigas FARC, cuja guerra particular por rotas do narcotráfico incendiou o Catatumbo desde janeiro. Bogotá suspendeu negociações de paz com o ELN após atribuir aos rebeldes “crimes de guerra”, enquanto relatos apontam deslocamentos massivos e um custo humano elevado. Nesse contexto, Caracas intensificou operações, destruiu acampamentos ilegais em Zulia e reforçou guarnições, numa tentativa declarada de impedir infiltrações e “cortar” linhas de suprimento.
A análise de risco militar sugere que a FANB antecipa um cenário de “dupla frente”: dissuadir ataques convencionais (bombardeios limitados, interdição marítima) e neutralizar guerra irregular no interior — células que poderiam explorar o caos de um choque externo. Em declarações a imprensa internacional, Maduro afirmou que, “se atacada”, Venezuela “declararia uma luta armada” e colocaria “a República em armas”. A frase ajuda a dimensionar a aposta na dispersão de forças e no custo político-operacional de qualquer ação direta contra o território venezuelano.
O que está em jogo para Caracas é mais do que a defesa física de pontos sensíveis; é a manutenção da governabilidade e do controle vertical do regime em um momento de pressão externa e fricções internas. Nesse sentido, a criação de “movimentos” sincronizados — do litoral às fronteiras e às grandes cidades — funciona como redundância tática e como mensagem para bases e interlocutores: a cadeia de comando permanece operante. Ainda em setembro, a cúpula anunciou o salto de 10 mil para 25 mil militares em áreas prioritárias (litoral oriental, Delta Amacuro, arquipélago de Nueva Esparta), com ênfase na defesa de plataformas e rotas marítimas.
Leituras cruzadas. Do lado norte-americano, a postura militar — incluindo o upgrade de instalações no Caribe e a rotação de vetores aéreos — tem sido apresentada como “treinamento” e “interdição de cartéis”. Na prática, a reconversão de bases e a massa crítica de meios navais e aéreos criam um ambiente de negócios estratégico onde a previsibilidade depende de sinais políticos, não apenas de métricas do tráfico. Esse é o tipo de quadro em que a apuração exclusiva das duas partes e a disputa de narrativas tornam-se armas: cada exercício vira prova de intenção; cada apreensão, um álibi. Até aqui, Washington evita falar em “operação contra regime”, enquanto Caracas sustenta que “a ameaça é real e imediata”.
Fronteira em chamas, efeitos civis. A violência no Catatumbo — intensificada por embates entre ELN e dissidências — já deixou centenas de mortos e dezenas de milhares de deslocados ao longo de 2025, com parte desse fluxo atravessando para o lado venezuelano. À medida que forças regulares aumentam sua presença e milícias expandem patrulhas, o risco humanitário cresce: o “colchão social” fica mais fino, e organizações internacionais alertam para o uso de detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados em períodos de crise política. É nesse quadro que a defesa do Estado de Direito e do devido processo volta ao centro do debate.
O que muda no cálculo estratégico de Caracas é a priorização de “negabilidade plausível” e elasticidade logística. Em outras palavras: operações dispersas, comandos regionais com autonomia e integração mais estreita entre forças convencionais e estruturas auxiliares. Em setembro, as chamadas “zonas de batalha” formalizadas pelo governo já refletiam essa descentralização, ao mesmo tempo em que exercícios em La Orchila — ilha crucial para defesa aérea e vigilância — testaram tempos de resposta e conectividade entre radares, baterias e unidades de superfície.
Canais abertos, ruído alto. Apesar da retórica, autoridades venezuelanas afirmam manter canais de comunicação com Washington — reconhecimento pragmático de que o custo de uma escalada aberta seria elevado para todos. Aqui, a correlação de forças não se mede apenas em tonelagem de navios; passa por energia, fluxos migratórios, eleições sensíveis na região e pelo risco de incidentes com civis em mar ou terra. Em paralelo, a oposição venezuelana enxerga a presença militar dos EUA como alavanca de pressão, contraponto à narrativa oficial.
Contexto e dados para além do fato. A Venezuela combina um aparato militar sob estresse — por obsolescência e escassez de peças — com redes paramilitares e milicianas que imprimem resiliência assimétrica. Esse mosaico complica o planejamento de qualquer força externa e aumenta o prêmio do erro. Do ponto de vista doméstico, a mobilização massiva é, também, sinalização ao mercado interno: disciplina, presença e custo de deserção elevados. Do ponto de vista internacional, o tabuleiro é de contenção mútua: cada demonstração norte-americana — um sobrevoo de B-1, um deslocamento de F-35B, um destroyer a mais — busca apertar torniquetes financeiros e logísticos do regime, sem cruzar linhas que disparem um conflito direto.
O fio da navalha. Se há um consenso entre analistas, é que a expansão de meios no Caribe aumenta a probabilidade de incidentes. A resposta venezuelana procura tornar qualquer incursão um problema prolongado, com atrito em múltiplas frentes e os custos políticos de imagens de destruição em áreas urbanas. Ao amarrar defesa territorial e combate à guerrilha transnacional, Miraflores tenta neutralizar dois riscos simultaneamente: o externo (coerção militar) e o interno (erosão do controle). É um arranjo tático que, por ora, faz sentido no discurso e em exercícios; o teste real — que ninguém na região diz desejar — dependeria de uma faísca, um erro de cálculo, um choque no mar ou na selva.
No balanço de diferença entre fato e opinião, os movimentos de ambos os lados seguem verificáveis: aviões, navios, tropas e decretos. As intenções, não. E é justamente aí que a temperatura política tende a oscilar mais: entre demonstração e escalada, entre dissuasão e confronto, entre “mostrar bandeira” e cruzar um Rubicão caribenho. Por ora, o que está em jogo é evitar a etapa seguinte — aquela em que doutrinas deixam o papel e o ruído dá lugar ao som de motores em missão de combate.
Fontes:
Reuters – How the US is preparing a military staging ground near Venezuela.
Reuters – Venezuela to boost troops to tackle drug trafficking as US strengthens military in Caribbean.
AP News – Maduro says Venezuela ready to respond to US military presence in the Caribbean.
AP News – Venezuela will deploy military vessels to Caribbean and other waters to combat drug trafficking.
El País (EN) – Maduro warns the US: ‘If Venezuela was attacked, we would declare an armed struggle’.
Al Jazeera – Venezuela’s Maduro to mobilise millions in militia over US ‘threats’.
France 24 – Venezuela’s Maduro rallies civilian militia volunteers, citing US invasion ‘threat’.
Le Monde – Venezuela’s army weakened as US military pressure intensifies.
El País (vídeo) – Venezuela realizó ejercicios militares en la isla La Orchila…
Infobae – El régimen de Maduro inició ejercicios militares en La Orchila…
AP News – Colombia halts peace talks with ELN rebels… (contexto fronteiriço).
Le Monde – En Colombie, les affrontements… Catatumbo. (contexto humanitário).
