Kim Yong Nam, ex-presidente do Presidium da Assembleia Popular Suprema da Coreia do Norte — o equivalente ao chefe de Estado cerimonial — morreu aos 97 anos. Segundo a mídia estatal, a causa foi falência múltipla de órgãos, e um funeral de Estado foi marcado para quinta-feira, 6 de novembro de 2025, com Kim Jong Un no topo do comitê fúnebre. A morte encerra a trajetória do mais longevo “rosto diplomático” do regime, ativo por décadas como chanceler e, depois, como representante oficial em cúpulas e recepções. Para analistas, é um evento de alto valor simbólico, mas que não altera o núcleo de poder — nem a ameaça estratégica que Pyongyang impõe à região. AP News
Entre 1998 e 2019, Kim Yong Nam exerceu a função de presidente do Presidium, enquanto o poder real permanecia concentrado na família Kim. Nesse período, foi anfitrião de delegações estrangeiras, assinou notas de felicitações e condolências e conduziu ritos que compõem a “diplomacia de rotina” de regimes fechados. Em 2019, ele foi sucedido por Choe Ryong Hae, em uma reorganização que também consolidou, de forma explícita, a condição de Kim Jong Un como chefe de Estado no texto constitucional. A imagem que perdura para o público fora da península é a de 2018: Kim Yong Nam chefiando a delegação norte-coreana nos Jogos de Inverno de Pyeongchang, ao lado de Kim Yo Jong, num raro momento de descompressão. AP News
Sob uma lente de direita, esse obituário político não deve ser romantizado: Kim Yong Nam foi, acima de tudo, um operador leal de um Estado totalitário que há décadas combina repressão interna com chantagem nuclear. A “trégua olímpica” de 2018 — celebrada por setores que apostam em gestos simbólicos — não produziu desmantelamento verificável do arsenal, tampouco reduziu o ritmo de testes de mísseis de médio e longo alcance. O que houve foi uma pausa tática, seguida de novos avanços tecnológicos do complexo militar norte-coreano, enquanto o regime ganhava tempo e legitimidade externa. A morte de um funcionário veterano não muda essa equação: o problema não eram os intérpretes da mensagem, e sim a mensagem estratégica do regime.
O tom das reações externas confirma a leitura geopolítica. Pequim apressou-se em lamentar “profundamente” o falecimento, chamando Kim de “velho amigo da China” e destacando seu papel para os “tradicionais laços de cooperação”. É a diplomacia calculada de quem se beneficia de um vizinho imprevisível que distrai e divide adversários. A nota não é apenas protocolo: é sinal de que a rede de suporte político e econômico que sustenta Pyongyang continua ativa. Para quem defende uma ordem internacional baseada em regras, o recado é claro: o eixo de conveniência entre China e Coreia do Norte — com a Rússia frequentemente orbitando — seguirá oferecendo oxigênio ao regime, inclusive em foros multilaterais. Reuters
Do lado das democracias, a morte de Kim Yong Nam serve como lembrete prático: boa vontade, sozinha, não entrega resultados em proliferação nuclear. É imperativo reforçar a tríade de dissuasão e defesa (EUA-Coreia do Sul-Japão), consolidar a interoperabilidade de sistemas antimísseis e fechar brechas de sanções que persistem no comércio marítimo de bens duais e petróleo. A história recente comprova que as rodadas de “diálogo pelo diálogo” foram rapidamente instrumentalizadas por Pyongyang para arrancar concessões e, na sequência, retroceder em compromissos. O custo de repetir esse ciclo é alto: mais testes, mais alcance, mais precisão — e uma janela de alerta cada vez menor para Seul e Tóquio.
Também vale olhar para dentro do regime. O funeral de Estado — que terá coreografia milimétrica e quadros hierárquicos bem exibidos — funcionará como termômetro de prioridades. Quem aparece ao lado de Kim Jong Un? Quem lê o necrológio? Quem recebe delegações estrangeiras? Em sistemas de partido único, essas escolhas comunicam muito. Mas, ao contrário de análises indulgentes que enxergam “moderados” e “pragmáticos” prontos para emergir, a trajetória recente sugere o oposto: uma elite depurada, ideologicamente alinhada e focada em parcerias de conveniência que mitiguem o impacto das sanções. Em 2019, a sucessão no Presidium já havia ajustado o desenho institucional para concentrar formalmente a chefia de Estado nas mãos de Kim Jong Un. Nada indica reversão. Reuters
O balanço de sua carreira, por sua vez, pede precisão. Kim Yong Nam foi ministro das Relações Exteriores entre 1983 e 1998 e “chefe de Estado” cerimonial por 21 anos, atravessando três gerações da dinastia. Ganhou reputação de sobrevivente político — alguém que se manteve útil e discreto, sem cair em desgraça. Mas justamente por isso sua biografia ajuda a refutar narrativas ingênuas: Pyongyang preserva quadros que cumprem a função de dar verniz diplomático a uma política externa orientada pelo avanço do programa nuclear e pelo controle social interno. Os telegramas de condolências que ele assinava para líderes de regimes amigos não apagavam prisões arbitrárias, campos de detenção e violações de direitos humanos que seguem amplamente documentadas por organismos internacionais. Reuters
A reação chinesa, mais uma vez, ilumina o tabuleiro. Ao homenagear Kim como “amigo”, Pequim sinaliza continuidade. Em linguagem de realpolitik, isso significa linhas de crédito político, comércio para driblar sanções e cobertura diplomática quando necessário. O recado aos aliados dos EUA é que qualquer estratégia séria para a península exige conter não só o risco militar norte-coreano, mas também os incentivos externos que sustentam o regime. Isso envolve perseguir com rigor redes de navegação de bandeira de conveniência, empresas-fachada e corredores logísticos que facilitam transferências ilícitas — uma agenda técnica, mas essencial, em que os detalhes regulatórios valem mais do que declarações solenes. Reuters
Há, por fim, o debate sobre “oportunidades” diplomáticas abertas por lutos de Estado. É compreensível que governos e analistas examinem fissuras — toda coreografia de poder pode revelar algo. Porém, à direita, a prudência recomenda calibrar as expectativas: regimes autoritários costumam usar funerais como vitrine de unanimidade, e não como espaço de concessão. O que pode mudar é a ênfase de política externa na vitrine — mais retórica de soberania, gestos para Moscou ou Pequim —, mas não o vetor estratégico: manter o arsenal, avançar em mísseis e buscar alívio de sanções sem contrapartidas verificáveis.
Do ponto de vista prático para o Brasil e outros países fora do teatro imediato, as implicações passam pela defesa do multilateralismo efetivo — aquele que evita ser capturado por narrativas que equiparam “diálogo” a “concessão unilateral”. Apoiar o cumprimento estrito das resoluções do Conselho de Segurança sobre a Coreia do Norte e cooperar com iniciativas de fiscalização marítima e financeira é contribuir, de fato, para a estabilidade. O resto é encenação. As “pontes culturais” podem existir — e até render fotos simpáticas —, mas não substituem o essencial: pressão coordenada, sanções com execução robusta e clara disposição de responder a violações.
É possível reconhecer a habilidade burocrática de Kim Yong Nam — e o papel que exerceu como fiel escudeiro do regime — sem cair na tentação de reescrever a realidade estratégica da península. Ele foi o mestre de cerimônias de um projeto de poder que, até aqui, só recuou quando confrontado com custos reais. Se há lição a tirar de sua morte, ela não está em buscar “sinais de moderação” na coreografia do funeral, mas em atualizar premissas para um cenário em que a dissuasão, a defesa de camadas e a coerção econômica seguem sendo as únicas linguagens que Pyongyang leva a sério.
Parágrafo final
Kim Yong Nam deixa a cena como símbolo de continuidade do regime, não como pretexto para ilusões. A segurança de aliados e parceiros depende menos de flores depositadas junto ao caixão em Pyongyang e mais de THAADs, Aegis, patrulhas, sanções aplicadas e uma aliança EUA-Coreia do Sul-Japão firme no essencial: impedir que a chantagem nuclear renda dividendos. Respeitem-se os ritos, mas mantenha-se a clareza estratégica.
