A Coreia do Norte anunciou a morte de Kim Yong Nam, ex-presidente do Presidium da Assembleia Popular Suprema — função equivalente ao chefe de Estado cerimonial — aos 97 anos. A notícia, divulgada pela mídia estatal e confirmada por agências internacionais, informa que haverá funeral de Estado em Pyongyang, com Kim Jong Un liderando as homenagens. Segundo relatos iniciais, a causa teria sido falência múltipla de órgãos, e a cerimônia está prevista para quinta-feira, 6 de novembro de 2025. AP News
Para quem acompanha a política norte-coreana, Kim Yong Nam foi mais do que um rosto protocolar em cúpulas e recepções oficiais. Ministro das Relações Exteriores entre 1983 e 1998, ele assumiu o posto de “chefe de Estado” de fato — em sentido estritamente cerimonial — de 1998 a 2019, atravessando três lideranças da dinastia Kim (Kim Il Sung, Kim Jong Il e Kim Jong Un). Em 2019, foi substituído por Choe Ryong Hae; naquele mesmo ano, mudanças constitucionais consolidaram o Presidente da Comissão de Assuntos de Estado (Kim Jong Un) como chefe de Estado no texto legal. Reuters
O diplomata que sobreviveu ao tempo — e às purgas
A trajetória de Kim Yong Nam ajuda a entender por que sua morte, embora não traga impactos institucionais imediatos, é relevante simbolicamente. Ele era a ponte que conectava a velha guarda da Revolução de 1948 ao presente, com trânsito amplo em espaços diplomáticos e em redes de solidariedade do Sul Global. Como chanceler e, depois, como presidente do Presidium, acumulou décadas de interlocução com capitais africanas e asiáticas, recepcionando em Pyongyang delegações estrangeiras e aparecendo com frequência em cúpulas. Foi também figura central no degelo olímpico de 2018, quando chefiou a delegação enviada à abertura dos Jogos de Pyeongchang, na Coreia do Sul, e se encontrou com o então presidente Moon Jae-in — um raro momento de diplomacia pública norte-coreana sob holofotes mundiais. Reuters
Kim era visto por analistas como um “burocrata de alto desempenho”: discreto, previsível, fiel à linha do Partido dos Trabalhadores da Coreia — atributos valiosos num sistema político em que mudanças de humor podem custar carreiras. Em termos de estilo, preferia a linguagem do direito internacional e a retórica da não-interferência, argumento caro a muitos países do Sul. Ao sobreviver a trocas de gabinete e a revezes estratégicos, manteve-se como fiador de continuidade — quase uma instituição dentro da instituição.
A mensagem de Pequim — e o recado para a região
A reação imediata da China, que chamou Kim de “velho amigo” e expressou “profundas condolências”, não é mero protocolo. Com o Tratatado de Amizade e Cooperação vigente e o estreitamento estratégico sino-norte-coreano dos últimos anos, Pequim sugere, com o gesto, que a relação entre os dois países segue estável e guiada por lideranças que se conhecem há décadas. Num momento em que a competição entre potências se acirra no Indo-Pacífico, a China sinaliza que continuará respaldando Pyongyang em foros regionais, ainda que discorde do programa nuclear. Reuters
Para vizinhos como Coreia do Sul e Japão — e para os Estados Unidos — o luto de Estado pode ser ocasião para leitura de sinais. Funerais desse porte, em regimes de partido único, servem a coreografias políticas: definem lugares no palco, hierarquias, alianças internas. Quem aparece ao lado de Kim Jong Un? Quem lê o obituário? Quem recebe delegações estrangeiras? Respostas a essas perguntas costumam revelar tanto quanto comunicados oficiais.
O que muda agora? Do ponto de vista institucional, pouco; no plano simbólico, bastante
Kim Yong Nam estava aposentado desde 2019. Sua saída do posto naquele ano marcou a transição para uma arquitetura constitucional em que Kim Jong Un passou a acumular, também formalmente, a condição de chefe de Estado. Na prática, portanto, o vácuo político foi preenchido há seis anos; a máquina do Estado continuou a funcionar, com Choe Ryong Hae ocupando a presidência do Presidium. A morte, no entanto, encerra uma biografia que ancorava a memória institucional do país — um arquivo vivo de relações com o mundo desde a Guerra Fria tardia. france24.com
Um olhar de esquerda: diplomacia, paz e gente comum
Sob uma lente progressista, a notícia deveria ser oportunidade para rediscutir a política para a Península Coreana, centrando a dignidade da população e a paz regional. A história de Kim Yong Nam é também a história de uma janela diplomática que se abre de tempos em tempos — e que, quando aproveitada, reduz tensões, aproxima famílias separadas e cria corredores humanitários.
Em 2018, a presença norte-coreana nos Jogos de Inverno serviu como gesto simbólico de descompressão. À esquerda, há uma defesa consistente de que iniciativas assim — trocas culturais, programas de saúde transfronteiriços, cooperação em desastres climáticos — são mais eficazes para frear escaladas do que exercícios militares de larga escala. Num contexto em que sanções amplas penalizam sobretudo gente comum (escassez de medicamentos, encarecimento de alimentos e energia), insistir exclusivamente na coerção tende a produzir armadilhas de segurança. Priorizar canais de diálogo, ainda que mínimos, é uma forma de construir confiança onde desconfiança é regra. Reuters
O papel dos funerais de Estado como diplomacia pública
A cerimônia marcada para quinta-feira, 6 de novembro, terá valor midiático interno e externo. Internamente, reforça a narrativa de continuidade e lealdade, com Kim Jong Un no centro do ritual. Externamente, será ocasião para enviar mensagens calibradas a aliados e adversários — inclusive à China, que já emitiu condolências enfáticas, e à Rússia, parceira de conveniência em alguns expedientes. Para Seul e Washington, acompanhar o protocolo e as listas de comitês funerários pode oferecer pistas sobre ascensões e quedas na elite. AP News+1
O legado: entre o protocolo e a política
Reduzir Kim Yong Nam a “figurante” seria um erro analítico. Chefes de Estado cerimoniais importam — e muito — em ecossistemas diplomáticos. São eles que sustentam a gramática do encontro: apertos de mão, fotos oficiais, brindes, os intervalos onde se combina a pauta real que, depois, chanceleres formalizam. No caso norte-coreano, onde a comunicação com o exterior é fortemente controlada, figuras como Kim operam como tradutores culturais: conhecem as expectativas do outro lado da mesa e sabem até onde ir sem afrontar dogmas internos.
Sua morte, portanto, fecha uma etapa da “diplomacia de rotina” da Coreia do Norte — aquela dos rituais, das cartas de felicitações, dos telegramas de condolências, das visitas empossadas por décadas à frente de conselhos, assembleias e presidiums. Para a esquerda, que aposta em uma segurança cooperativa no Nordeste Asiático, lembrar esse legado é lembrar que janelas diplomáticas, mesmo estreitas, existem e precisam ser usadas.
E agora?
No curtíssimo prazo, não há expectativa de mudanças de linha: a política externa seguirá subordinada à estratégia nuclear e à busca por garantias de regime. Mas a sucessão biográfica de quadros históricos — como foi com Kim Ki-nam em 2024 e agora com Kim Yong Nam — tende a acelerar a consolidação de uma geração moldada já sob Kim Jong Un, menos ligada às memórias diretas da Guerra Fria e mais pragmática na gestão de parcerias com China e Rússia. Para a comunidade internacional, a aposta responsável é combinar contenção de ameaças com diplomacia persistente e ajuda humanitária despolitizada — inclusive apoiando iniciativas da ONU para mitigar insegurança alimentar e energética no inverno que se aproxima em Pyongyang. AP News
Por fim, há um elemento regional que merece sublinhado: a expressão pública de condolências por parte de Pequim, ao mesmo tempo em que Washington e Seul calibram mensagens, reforça que a disputa geopolítica maior — EUA x China — atravessa cada gesto na península. O risco de ruído é alto; o custo humano de mal-entendidos, maior ainda. A melhor homenagem a diplomatas profissionais, de qualquer regime, é apostar no encontro em vez do confronto. Reuters
Parágrafo final
Kim Yong Nam sai de cena como símbolo de uma Coreia do Norte que cultivou, por décadas, uma diplomacia de constância e protocolo para reduzir danos de um isolamento que, muitas vezes, recai sobre os mais vulneráveis. Sua morte não muda o essencial da correlação de forças, mas convida o mundo — e especialmente os países da região — a usar o luto como pausa para recalibrar prioridades: desarmar a retórica, ampliar a cooperação humanitária e abrir canais de diálogo que coloquem a vida no centro. Essa é a leitura consequente, solidária e pragmática que uma visão de esquerda pode oferecer neste momento.
Fontes
- Reuters – North Korea says former ceremonial head of state Kim Yong Nam dies. Reuters
- AP News – North Korea’s longtime ceremonial head of state Kim Yong Nam has died. AP News
- Reuters – China extends ‘deep condolences’ over death of North Korea’s former ceremonial head of state. Reuters
- France 24 – Pyongyang replaces nominal head of state: KCNA. france24.com
