A audiência pública convocada para esta sexta-feira (31) pelo Ministério do Comércio da China (MOFCOM) no caso antidumping contra a carne suína e subprodutos oriundos da União Europeia é mais do que um rito processual: é um capítulo decisivo de uma disputa comercial que já encareceu alimentos, tensionou cadeias produtivas, ameaçou empregos rurais e deslocou renda de pequenos produtores para grandes conglomerados em ambos os lados do Eurasia. Em jogo, estão tarifas provisórias de até 62,4% sobre as exportações europeias de suínos para o mercado chinês — um fluxo que historicamente supera os US$ 2 bilhões anuais e que tem na venda de miúdos um componente vital para a renda de países como Espanha, Dinamarca e Holanda.
Na prática, o que se discute hoje é se a China, principal consumidora mundial de carne suína, irá consolidar ou recalibrar as taxas provisórias aplicadas em setembro, quando Pequim concluiu, em decisão preliminar, que a UE exporta a preços abaixo do custo — prática de dumping — causando “dano material” à sua indústria doméstica. Para empresas europeias que colaboraram com a investigação, as alíquotas ficaram entre 15,6% e 32,7%; para as demais, o teto é 62,4%. O anúncio acentuou a espiral de retaliações que começou no setor automotivo e atravessou a mesa do jantar.
Como chegamos até aqui
O contencioso dos suínos é o espelho agroalimentar de uma disputa maior: os veículos elétricos chineses. Em outubro de 2024, após investigação antissubsídios, a Comissão Europeia impôs medidas definitivas sobre BEVs fabricados na China, alegando subsídios que ameaçavam a indústria europeia. Foi o sinal mais claro de que Bruxelas pretendia “recalibrar” a relação comercial com Pequim — mantendo-se aberta a compromissos de preços, mas firme na cobrança de um “campo de jogo nivelado”. A resposta chinesa ganhou corpo em 2024/2025 com a abertura de painéis e medidas sobre conhaque francês e, agora, carne suína. European Commission+1
No caso do pork, a investigação foi aberta em junho de 2024 a partir de petição da associação chinesa do setor, prorrogada ao longo de 2025 e chegou à decisão preliminar em 5 de setembro de 2025. A extensão do inquérito até 16 de dezembro de 2025 e a exigência de depósitos de garantia sinalizaram que Pequim pretendia manter pressão enquanto deixava uma porta entreaberta para negociação. eusmecentre.org.cn+1
A peça que falta no prato: os miúdos
Há um dado pouco discutido fora do agronegócio que ajuda a dimensionar o impacto social das tarifas: mais de 50% do que a UE vende de suínos à China não são cortes “nobres”, e sim miúdos — orelhas, focinhos, pés e vísceras. Esses itens, com menor valor e escoamento limitado em outros mercados, encontram na demanda chinesa um destino que agrega renda e viabiliza a carcaça como um todo. Ao encarecer ou bloquear esse comércio, a tarifa bate proporcionalmente mais forte no produtor europeu de menor margem e menor poder de barganha. Em termos simples: o que para uma trading global é “ajuste de portfólio”, para um criador familiar pode ser a diferença entre continuar no campo ou fechar as porteiras. porciNews, la revista global del porcino
O que está em jogo do ponto de vista progressista
De uma ótica progressista, há pelo menos cinco dimensões críticas:
- Proteção do emprego e da renda rural
Tarifas de mão dupla que miram setores intensivos em trabalho — frigoríficos, logística, processamento de miúdos — tendem a penalizar trabalhadores e pequenos fornecedores antes de qualquer reequilíbrio industrial. Uma política comercial centrada em pessoas exigiria, aqui, fundos de ajuste (requalificação, crédito barato, compras públicas) voltados aos elos mais frágeis da cadeia, tanto na UE quanto na China, e não apenas compensações para grandes campeões nacionais. - Alimentos a preços justos, sem sacrificar padrões
A Europa tem padrões sanitários e de bem-estar animal mais rígidos; a China, por sua vez, viveu choques de oferta (peste suína africana) que tornaram a segurança alimentar uma prioridade. Em vez de uma “corrida para o fundo” que empurra ambos à redução de custos via precarização, o caminho é convergência regulatória para cima, com cooperação sanitária e traçabilidade digital que reconheça equivalências sem relaxar regras. - Transição justa na indústria verde
A disputa começou nos EVs e respinga na carne porque o comércio é um sistema de vasos comunicantes. A Europa tem razão em exigir competição limpa no setor elétrico; a China tem razão em lembrar que cadeias globais foram otimizadas para preço. Uma trégua que inclua compromissos de preço para EVs e um memorando setorial para agroalimentos — com metas de descarbonização na suinocultura e incentivos a ração de menor pegada — reduziria o incentivo a retaliações cruzadas. European Commission - Combate à concentração
Guerra tarifária tende a beneficiar conglomerados com capacidade de segurar estoque, redesenhar rotas e financiar litígios, enquanto sufoca cooperativas e PMEs. Um acordo deveria incluir cláusulas pró-concorrência e apoio a cooperativas transnacionais, permitindo que pequenos produtores acessem o mercado chinês por meio de plataformas compartilhadas de exportação. - Reforço do multilateralismo
Se tudo vira retaliação, o WTO vira letra morta. Submeter os casos a painéis, reativar discussões técnicas e pactuar salvaguardas temporárias (curtas, revisáveis) é preferível ao pingue-pongue de tarifas que agrava a inflação de alimentos e desorganiza investimentos.
Impacto regional na UE
Entre os países mais expostos estão Espanha, Dinamarca e Holanda, pelo peso de suas exportações de suínos para a China. Na Espanha, a cadeia de valor dos miúdos é parte essencial da viabilidade econômica de produtores e frigoríficos; na Dinamarca, exportadores altamente eficientes dependem de escala e contratos estáveis; na Holanda, a pressão ambiental interna já encareceu a produção. A perda do mercado chinês empurra excedentes para a própria UE, derrubando preços domésticos e pressionando o pequeno produtor — precisamente o elo que políticas agrícolas deveriam proteger. Reuters+1
O consumidor chinês
Para a China, o argumento oficial é proteger a indústria local de práticas desleais. Mas há um trade-off: tarifas elevadas podem encarecer certos cortes e miúdos no mercado doméstico, afetando consumidores de renda mais baixa. Em um país onde a carne suína tem peso simbólico e nutricional, a prioridade deveria ser garantir abastecimento estável e acessível. A melhor maneira de conciliar defesa comercial e segurança alimentar é perseguir soluções negociadas — por exemplo, quotas tarifárias específicas para miúdos, com preços de referência e mecanismos de gatilho (suspensão automática da tarifa quando o preço interno ultrapassar determinado patamar).
O que pode (e deveria) sair da audiência
A audiência de hoje permite que governo, indústria e importadores apresentem dados e cenários de impacto. Há três saídas factíveis:
- Consolidar as tarifas provisórias até a decisão final de dezembro, mantendo a pressão de barganha.
- Recalibrar alíquotas por empresa, premiando cooperação e compromissos de preço que evitem subcotação.
- Abrir uma via política: atrelar ajustes no caso do pork a entendimentos no dossiê dos EVs, retomando uma lógica de “paz tarifária condicional”.
Dessas, a terceira é a que melhor atende a um critério social-democrata: reduzir danos colaterais sobre trabalho e alimentação, enquanto preserva a autoridade regulatória de cada parte em setores sensíveis. Reuters
Roteiro para uma saída progressista
- Moratória parcial e quotas inteligentes para miúdos, com revisão trimestral baseada em preços internos, estoques e indicadores de renda.
- Fundo de Ajuste para Pequenos Produtores na UE, financiado por receitas tarifárias e aportes nacionais, focado em: bem-estar animal, redução de metano, eficiência hídrica e digitalização.
- Mecanismo de Compromisso de Preço para exportadores europeus de suínos, auditado por terceiros, que impeça subcotação abaixo de custos médios verificáveis.
- Mesa EV–Agro: um pacote cruzado de compromissos que reduza tarifas definitivas em EVs em troca de previsibilidade no agro, com metas de conteúdo local e sustentabilidade claras.
- Transparência e dados abertos: publicação de séries sobre custos, margens e emissões no setor, para que a sociedade civil monitore quem ganha e quem perde com cada medida.
No fundo, a audiência sobre a carne suína é um lembrete de que política comercial é política social. Entre protecionismo puro e laissez-faire ingênuo, há um caminho de cooperação regulatória que protege empregos, garante comida acessível e acelera a transição verde — sem transformar trabalhadores e pequenos produtores em dano colateral de uma guerra de tarifas.
Em um mundo de cadeias interdependentes, vencer não é impor o maior imposto, mas pactuar regras que inibam abusos e distribuam ganhos. A bola, hoje, está na mesa do MOFCOM; mas a jogada decisiva depende de Bruxelas aceitar que indústria verde e segurança alimentar fazem parte da mesma equação — e de ambos os lados colocarem gente e planeta no centro da negociação. European Commission
Fontes
Reuters – China to hold hearing on anti-dumping probe into EU pork on October 31. Reuters
Reuters – China slaps preliminary duties on EU pork imports. Reuters
Financial Times – China hits EU pork imports with temporary duties of up to 62%. ft.com
EU SME Centre – China’s Anti-Dumping Investigation into Pork Imports from the EU: Preliminary Ruling. eusmecentre.org.cn
Porcinews – EU pork sector hit as China imposes tariffs (offal share and Rabobank data). porciNews, la revista global del porcino
European Commission (Press release) – EU imposes duties on unfairly subsidised electric vehicles from China. European Commission
