Megaoperação letal no Rio de Janeiro intensifica discussão entre autoridades e especialistas sobre os potenciais impactos jurídicos e estratégicos de equiparar grupos como CV e PCC a organizações terroristas no combate ao crime organizado.
Após uma recente e brutal megaoperação policial no Rio de Janeiro, que se tornou a mais letal da história do país com 121 mortes, o debate nacional sobre a classificação de facções criminosas como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) como organizações terroristas reacendeu com força. A discussão polariza autoridades políticas e especialistas em segurança pública, expondo as complexidades jurídicas e os potenciais impactos estratégicos de uma medida que pode alterar significativamente a forma de combate ao crime organizado no Brasil. Este embate de ideias envolve desde a presidência da república até governadores e secretários estaduais, além de renomados juristas e acadêmicos.
Contexto
O epicentro da discussão foi a operação policial de grande escala realizada no Rio de Janeiro. A ação, marcada pela alta letalidade, provocou uma imediata repercussão e levantou questionamentos sobre as estratégias de segurança pública. Neste cenário de comoção e busca por respostas eficazes, a ideia de equiparar as facções criminosas a grupos terroristas ganhou força em alguns setores.
Entre os defensores mais proeminentes da medida está o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o secretário de Segurança Pública do estado, Guilherme Derrite. Ambos têm vocalizado a necessidade de considerar a classificação de facções como o PCC e o CV como terroristas, argumentando que suas ações se assemelham às de grupos que buscam desestabilizar o Estado e impor o terror sobre a população. Para eles, a legislação atual não reflete adequadamente a gravidade e o alcance dessas organizações.
No entanto, o governo federal, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tem demonstrado ceticismo e cautela em relação a essa equiparação. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, que ocupava o cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública à época, também manifestou reservas, apontando para a complexidade jurídica e as possíveis implicações de tal mudança. A posição federal tende a focar na distinção entre crime organizado e terrorismo, conforme a legislação vigente.
A legislação central nesta discussão é a Lei nº 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo. Esta lei define terrorismo como “a prática por um ou mais indivíduos de atos por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Crucialmente, a lei explicitamente exclui da definição de terrorismo “a conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal prevista em lei”.
O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, conhecido por sua atuação no combate ao PCC, é um dos que defendem a reclassificação. Ele argumenta que, embora as facções tenham origem no crime comum, seu modus operandi evoluiu para incluir táticas que geram terror social e desestabilizam a ordem pública, como ataques coordenados a forças de segurança e infraestrutura. Para Gakiya, a distinção puramente motivacional se torna insuficiente diante da realidade das ações desses grupos.
Em contrapartida, o professor Rafael Alcadipani, especialista em segurança pública, alerta para os riscos de uma equiparação simplista. Ele sugere que tal medida poderia levar a uma escalada da violência e legitimar táticas de “guerra” por parte das facções, dificultando ainda mais o trabalho das forças de segurança. Alcadipani enfatiza a necessidade de se compreender a especificidade do crime organizado brasileiro, que, embora violento, possui uma lógica diferente daquela observada em grupos terroristas internacionais.
Historicamente, o debate sobre a natureza das grandes facções criminosas no Brasil não é novo. Desde a ascensão do PCC e do CV, suas ações têm sido comparadas a diferentes formas de subversão da ordem, mas a classificação formal como “terroristas” sempre esbarrou em questões jurídicas e conceituais. A megaoperação no Rio de Janeiro, contudo, serviu como um catalisador para que essa discussão retornasse com vigor à pauta política e social, impulsionada pela percepção de que as ferramentas atuais podem ser insuficientes.
Impactos da Decisão
Uma eventual classificação de facções como terroristas traria uma série de implicações jurídicas e operacionais significativas. Legalmente, haveria a possibilidade de aplicação de penas mais severas, de acordo com a Lei Antiterrorismo, que prevê punições mais rigorosas para atos terroristas. Além disso, as investigações poderiam ter acesso a instrumentos e procedimentos específicos, como maior agilidade no bloqueio de bens e contas bancárias, e a utilização de técnicas de inteligência diferenciadas, o que teoricamente fortaleceria o aparato de combate a esses grupos.
No entanto, a preocupação central reside na potencial ampliação de poderes investigativos e na consequente possibilidade de abuso e violação de direitos humanos. Críticos da medida temem que a classificação indiscriminada possa levar à criminalização de movimentos sociais ou a uma repressão excessiva que atinja populações vulneráveis, em vez de focar apenas nas lideranças e financiadores do crime organizado. A demarcação clara entre as ações de facções e as definições legais de terrorismo é um ponto crucial e delicado.
A distinção entre o crime organizado e o terrorismo, embora por vezes tênue, é fundamental sob a ótica da lei. Enquanto o crime organizado visa primariamente o lucro e o controle territorial através de atividades ilícitas, o terrorismo, na maioria das definições legais e internacionais, busca objetivos políticos, ideológicos ou religiosos, utilizando a violência para incutir medo e pressionar governos ou populações. A motivação é, portanto, um fator determinante na classificação.
O promotor Lincoln Gakiya, contudo, argumenta que o modus operandi de facções como o PCC, com ataques coordenados e aterrorizantes, transcende a mera busca por lucro. Para ele, a capacidade de gerar pânico e desestabilizar as instituições de segurança e o sistema prisional já configura uma forma de terror, mesmo que o objetivo final seja manter o poder sobre o mercado ilegal. Ele ressalta que as ações desses grupos vão além da simples criminalidade e impactam a soberania do Estado.
Por outro lado, o professor Rafael Alcadipani adverte para os riscos de uma retaliação ainda mais violenta por parte das facções, caso sejam formalmente designadas como terroristas. Ele levanta a possibilidade de que essa nova classificação possa ser interpretada pelos grupos criminosos como uma “declaração de guerra” em um nível superior, incentivando a adoção de táticas ainda mais extremas e exacerbando o ciclo de violência. Além disso, a designação poderia ter impactos na percepção internacional do Brasil.
A postura do governo federal, conforme sinalizado pelo presidente Lula e pelo ministro Ricardo Lewandowski, reflete a prioridade em focar no combate ao crime organizado e na descapitalização dessas facções, utilizando as ferramentas já existentes na legislação específica. A preocupação é que a mudança de classificação possa desviar o foco do problema principal e criar mais problemas do que soluções efetivas, sem necessariamente resolver a raiz da violência e da criminalidade.
A equiparação também levantaria questões sobre a imagem internacional do Brasil e sua posição no combate ao terrorismo global. Embora o país tenha histórico de cooperação internacional contra o terror, rotular grupos domésticos como terroristas poderia gerar pressões e expectativas adicionais, bem como implicações diplomáticas e de segurança que precisariam ser cuidadosamente avaliadas. A precisão terminológica é vital em um contexto tão sensível.
Desafios na Implementação
Um dos grandes desafios na implementação seria a capacitação das forças de segurança para lidar com uma nova tipificação. A mentalidade e os protocolos de combate ao terrorismo diferem daqueles empregados no enfrentamento ao crime organizado tradicional. Seria necessária uma profunda reestruturação de treinamento, inteligência e coordenação entre as diversas agências, o que demandaria tempo e recursos significativos.
Ademais, a reclassificação poderia gerar controvérsias judiciais intermináveis, com advogados questionando a constitucionalidade e a aplicação da Lei Antiterrorismo a casos que, em sua essência, nasceram da criminalidade comum. Isso poderia sobrecarregar o sistema judiciário e criar incertezas quanto à aplicação da lei, prejudicando a efetividade das ações.
Há ainda a questão da opinião pública e do apoio social. Enquanto a população clama por mais segurança e medidas duras contra o crime, a compreensão das nuances legais e das potenciais consequências de uma medida como essa é fundamental. A polarização do debate, já evidente entre as autoridades, reflete essa complexidade e a dificuldade em construir um consenso amplo sobre o caminho a seguir.
Próximos Passos
O debate sobre a classificação de facções criminosas como terroristas está longe de ser concluído. Com a polarização entre autoridades estaduais e federais, e as divergências entre especialistas, é provável que a discussão continue a permear o cenário político e jurídico brasileiro por um bom tempo. A pressão por respostas efetivas à violência e ao poder do crime organizado, contudo, manterá o tema em evidência, impulsionando a busca por novas abordagens e soluções.
É possível que o Congresso Nacional seja palco de novas propostas legislativas visando alterar a Lei Antiterrorismo ou criar categorias específicas que abarquem a complexidade das ações das facções. No entanto, qualquer mudança exigirá um intenso processo de negociação e consenso, considerando a sensibilidade do tema e os amplos impactos que uma alteração legal poderia gerar na segurança pública e nos direitos individuais.
Enquanto não há uma definição clara sobre a reclassificação, as operações de combate ao crime organizado, como a que ocorreu no Rio de Janeiro, continuarão a ser a principal ferramenta do Estado. O foco permanecerá na desarticulação das redes criminosas, na apreensão de bens e na prisão de lideranças, buscando enfraquecer financeiramente e operacionalmente essas organizações, independentemente de sua denominação legal como terroristas ou não.
A necessidade de um consenso amplo e de uma análise aprofundada das consequências de tal medida é frequentemente destacada por aqueles que pedem cautela. A decisão de reclassificar facções criminosas como organizações terroristas não é trivial e envolve considerações jurídicas, sociais, políticas e até mesmo internacionais, que exigem um estudo meticuloso para evitar resultados indesejados e garantir a eficácia do combate ao crime organizado.
O futuro da segurança pública brasileira e a forma como o Estado enfrentará as complexas redes criminosas dependerão, em grande parte, da capacidade de seus líderes e especialistas em encontrar um terreno comum e desenvolver estratégias que sejam robustas, justas e eficientes. A discussão atual é um reflexo da urgência em adaptar as ferramentas legais à realidade de um crime cada vez mais organizado e violento.
Fonte:
CNN Brasil – PCC e CV são terroristas? Veja o que dizem Lula, Tarcísio e especialistas. CNN Brasil
