Uma análise aprofundada revela a trajetória complexa da facção criminosa, desde sua formação inesperada no sistema prisional carioca até sua consolidação e avanço por todo o Brasil, com base em dados históricos e análises de especialistas.
Uma recente e violenta operação policial no Rio de Janeiro, visando conter o avanço territorial de facções criminosas, reacentuou o debate sobre a persistência e a expansão do Comando Vermelho (CV). No entanto, o foco desta análise vai além da ação imediata, buscando desvendar a complexa trajetória da facção, desde sua gênese inesperada no sistema carcerário carioca até sua consolidação e expansão nacional, utilizando análises de especialistas e dados históricos para desvendar o poder e a influência do CV no cenário atual da segurança pública brasileira.
Contexto
A origem do Comando Vermelho remonta ao início dos anos 1970, nas penitenciárias do Rio de Janeiro, um período marcado por intensas transformações sociais e políticas no Brasil. Longe de ser uma criação espontânea, a facção emergiu da convivência forçada entre presos comuns e militantes políticos que, encarcerados durante a ditadura militar, compartilhavam espaços e experiências de opressão.
Essa interação peculiar dentro do sistema prisional permitiu a transmissão de táticas de organização, disciplina e ideologias de resistência. William da Silva Lima, um dos fundadores do CV, documenta em seu livro 400 x 1 – uma história do Comando Vermelho, essa gênese, destacando como princípios de solidariedade e de enfrentamento ao Estado foram assimilados e adaptados pelos criminosos comuns, forjando uma nova forma de crime organizado.
A partir desse caldeirão ideológico e tático, o Comando Vermelho começou a se estruturar, primeiramente como uma irmandade de ajuda mútua entre os detentos, para depois transbordar os muros das prisões e estabelecer controle sobre territórios e atividades ilícitas nas favelas cariocas. Essa cronologia é fundamental para compreender não apenas a formação, mas também a resiliência e a adaptabilidade da facção ao longo das décadas.
A Gênese Inesperada e a Consolidação
Apesar da imagem consolidada de uma organização criminosa de alta periculosidade, a fase inicial do Comando Vermelho era, em grande parte, uma resposta às condições desumanas e à violência dentro do sistema carcerário. A socióloga Carolina Grillo, da UFF, ressalta que “a facção nasceu como uma espécie de sindicato do crime, buscando melhores condições para os presos”, o que rapidamente evoluiu para uma estrutura de poder paralela.
A expansão para fora das prisões consolidou o CV como uma força dominante no crime carioca, controlando pontos de venda de drogas e impondo sua própria ordem social em comunidades carentes. Este fenômeno foi um divisor de águas, transformando a dinâmica da segurança pública no Brasil e criando um modelo que seria replicado por outras facções.
A organização interna, a lealdade de seus membros e a capacidade de operar com uma hierarquia relativamente bem definida permitiram que o Comando Vermelho se destacasse. Diferente de grupos menores e mais pulverizados, a facção demonstrou uma habilidade singular para manter coesão e expandir sua influência, apesar da constante repressão estatal.
Expansão Nacional e Táticas de Atuação
A capacidade de projeção do Comando Vermelho para além do Rio de Janeiro é um dos aspectos mais notáveis de sua trajetória. A facção utilizou diversas estratégias para consolidar sua presença em outros estados brasileiros, incluindo alianças com grupos locais, o controle de rotas de tráfico de drogas e armas, e a imposição de sua marca e modus operandi em novas regiões.
Essa expansão não foi meramente territorial; ela representou também a diversificação das atividades criminosas do CV e a adaptação às particularidades de cada localidade. A socióloga Jacqueline Muniz, do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos do Departamento de Segurança Pública, observa que “o CV soube exportar seu modelo de gestão criminal, adaptando-o às realidades locais, o que garantiu sua sobrevivência e crescimento”.
A facção, ao longo dos anos, esteve envolvida em uma vasta gama de crimes, incluindo tráfico de drogas, roubos a bancos e de cargas, extorsão e, em algumas regiões, até mesmo a exploração de serviços clandestinos. A capacidade de operar em múltiplas frentes demonstra a sofisticação e a complexidade de sua estrutura, que vai muito além do simples controle de favelas.
A Influência nas Dinâmicas do Crime Organizado
O jornalista Rafael Soares, em seu livro Milicianos, contextualiza a ascensão do Comando Vermelho dentro do ecossistema do crime organizado brasileiro, mostrando como a facção influenciou e foi influenciada por outros grupos, incluindo as milícias. Essa interação complexa revela uma paisagem criminal em constante mutação, onde alianças e confrontos redefinem continuamente o poder no submundo.
O Mapa dos Grupos Armados, uma parceria entre o Instituto Fogo Cruzado, o GENI e a UFF, fornece dados cruciais sobre a distribuição e a atuação do CV e de outras facções no país. Esses dados são essenciais para entender a real dimensão do problema e para subsidiar políticas públicas mais eficazes no combate ao crime organizado.
Impactos na Segurança Pública e Desafios Atuais
A expansão e a consolidação do Comando Vermelho tiveram e continuam tendo profundos impactos na segurança pública brasileira. O controle territorial exercido pela facção em diversas comunidades gera um estado de insegurança para os moradores, além de desafiar constantemente a autoridade do Estado. As operações policiais, como a recente no Rio de Janeiro, embora necessárias, frequentemente resultam em confrontos violentos e na perda de vidas.
Os números dessas operações, quando divulgados pela Polícia Civil, demonstram a intensidade do conflito. No entanto, tais ações também são alvo de críticas, como as expressas pelo Alto Comissariado dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que frequentemente aponta preocupações com os direitos humanos e a letalidade policial em ambientes de confronto com facções.
O impacto socioeconômico é vasto, afetando o desenvolvimento das comunidades, a educação e a saúde dos cidadãos que vivem sob a influência dessas organizações criminosas. A presença do CV cria uma economia paralela, baseada na ilegalidade, que impede o crescimento sustentável e a inclusão social, perpetuando ciclos de violência e pobreza.
O Debate Sobre as Políticas de Combate
A complexidade do fenômeno do Comando Vermelho exige um debate aprofundado sobre as políticas de combate ao crime organizado. Especialistas apontam para a necessidade de abordagens multifacetadas que combinem ações de inteligência policial, desarticulação financeira das facções e, crucially, investimentos em políticas sociais e urbanísticas nas comunidades mais vulneráveis.
Apenas a repressão, sem o enfrentamento das causas sociais e econômicas que alimentam o recrutamento para essas facções, mostra-se insuficiente. A busca por soluções eficazes passa pela compreensão da dinâmica das comunidades, do papel do Estado e das lacunas que são preenchidas pelas organizações criminosas.
Próximos Passos
O cenário para os próximos anos em relação ao Comando Vermelho e ao crime organizado no Brasil é desafiador e incerto. As autoridades continuam a buscar estratégias para desmantelar as redes de atuação da facção, mas a adaptabilidade e a resiliência do CV indicam que a luta será contínua e exigirá uma abordagem estratégica e coordenada.
Espera-se que o monitoramento e a análise de dados, como os oferecidos pelo Mapa dos Grupos Armados, continuem a ser ferramentas essenciais para direcionar as ações de segurança. A colaboração entre instituições de pesquisa e órgãos de segurança pública é vital para entender as novas táticas da facção e antecipar seus movimentos.
No âmbito legislativo e de políticas públicas, o debate sobre a reforma do sistema prisional e a implementação de programas de prevenção à violência e de reinserção social de ex-detentos são pontos cruciais. A eficácia no combate ao Comando Vermelho e à sua influência dependerá da capacidade do Estado de atuar de forma integrada, transcendendo a mera resposta policial e abordando as raízes do problema.
A sociedade civil, por sua vez, continuará a ser um ator importante na pressão por transparência e por políticas de segurança que respeitem os direitos humanos e promovam a justiça social. O futuro da segurança pública brasileira passa, inevitavelmente, pela compreensão profunda da complexa trajetória do Comando Vermelho e pela construção de respostas inovadoras e eficazes.
Fonte:
BBC – Comando Vermelho: o que explica a origem e a expansão da facção criminosa. BBC
