Na câmara fria e solene do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque, onde as palavras são pesadas e o silêncio pode ser ensurdecedor, o Brasil fez ouvir sua voz. Em resposta ao mais recente teste de um míssil balístico intercontinental (ICBM) pela Coreia do Norte – um ato de provocação que mais uma vez acendeu os alarmes de segurança em Tóquio, Seul e Washington –, a delegação brasileira apresentou uma declaração que, para o observador casual, pareceu simples e direta: uma condenação clara do ato. No entanto, por trás da formalidade do discurso diplomático, a posição do Brasil é uma peça complexa e meticulosamente calibrada, uma verdadeira aula sobre a doutrina que há décadas norteia o Palácio do Itamaraty.
A declaração brasileira é um exercício de equilíbrio em fio de navalha. Por um lado, ela se alinha firmemente com a comunidade internacional na defesa do direito e das normas de não-proliferação. Por outro, demarca sutilmente sua distância das soluções puramente coercitivas, como a imposição automática de novas e mais duras sanções. Este não é um sinal de indecisão, mas sim a expressão consistente de uma política externa que busca afirmar o Brasil como um ator global responsável, um defensor do multilateralismo e um proponente incansável do diálogo – mesmo quando o diálogo parece impossível.
Nesta análise aprofundada, vamos dissecar os múltiplos pilares da posição brasileira, contextualizá-la no palco de um mundo dividido sobre a questão norte-coreana, explorar as raízes históricas que fundamentam essa abordagem e entender o que essa postura revela sobre as ambições do Brasil no cenário global.
A Anatomia da Posição Brasileira: Quatro Pilares de uma Mesma Doutrina
O discurso do representante brasileiro na ONU pode ser decomposto em quatro mensagens centrais, cada uma refletindo um princípio fundamental da diplomacia do país.
1. A Defesa Inequívoca do Direito Internacional: O primeiro pilar é a condenação explícita do teste. O Brasil classifica a ação de Pyongyang como uma “flagrante violação” das múltiplas resoluções do próprio Conselho de Segurança que proíbem a Coreia do Norte de desenvolver e testar tecnologia de mísseis balísticos. Nesta frente, não há ambiguidade. A posição alinha o Brasil com as potências ocidentais e seus aliados asiáticos, estabelecendo sua credibilidade como um país que preza pela ordem internacional baseada em regras.
2. O Apelo à Desnuclearização: A crítica brasileira está enraizada em seu compromisso histórico e constitucional com a não-proliferação de armas nucleares. Como um país que teve a capacidade técnica de desenvolver armas nucleares e optou conscientemente por renunciar a elas, tornando-se um membro exemplar do Tratado de Não-Proliferação (TNP), o Brasil fala com autoridade moral sobre o assunto. A condenação, portanto, não é apenas reativa, mas baseada em um princípio universalista de que um mundo com menos armas nucleares é um mundo mais seguro.
3. A Resistência ao “Automatismo” das Sanções: É aqui que a posição brasileira começa a divergir sutilmente da de Washington. O Itamaraty historicamente se opõe à imposição de sanções econômicas abrangentes como uma resposta automática a cada provocação. A lógica brasileira é dupla: primeiro, que tais sanções frequentemente punem a população civil de forma desproporcional, sem impactar significativamente as decisões do regime. Segundo, que as sanções, quando aplicadas fora de uma estratégia diplomática clara e com objetivos alcançáveis, podem se tornar um fim em si mesmas, encurralando o país-alvo e tornando o diálogo futuro ainda mais difícil.
4. A Primazia da Solução Diplomática: O pilar final, e talvez o mais importante, é a ênfase incansável na necessidade de diálogo. O discurso brasileiro certamente terminou com um apelo para que todos os lados evitem a escalada de tensões e trabalhem para trazer a Coreia do Norte de volta à mesa de negociações. Esta não é uma retórica vazia; reflete a crença central do Itamaraty de que não existe solução militar ou puramente coercitiva para crises complexas como a da Península Coreana.
O Cenário Global: Onde o Brasil se Encaixa na Crise Coreana
A posição calculada do Brasil torna-se ainda mais clara quando vista no contexto das divisões dentro do próprio Conselho de Segurança.
- O Bloco Ocidental (EUA, Reino Unido, França): Geralmente, este grupo reage aos testes norte-coreanos com um chamado por pressão máxima, defendendo o fortalecimento do regime de sanções para cortar o financiamento dos programas de armas de Pyongyang e forçar o regime a ceder.
- Os Vizinhos (China e Rússia): Como membros permanentes com poder de veto, China e Rússia desempenham um papel crucial. Embora também critiquem os testes de mísseis, sua principal preocupação é a estabilidade regional. Eles temem que sanções excessivamente duras possam levar a um colapso do regime norte-coreano, resultando em uma crise humanitária e de refugiados em suas fronteiras, e potencialmente uma Coreia unificada alinhada com os Estados Unidos. Por isso, frequentemente bloqueiam as tentativas ocidentais de impor as sanções mais severas.
Neste cabo de guerra, o “não-alinhamento ativo” do Brasil lhe permite atuar como uma ponte potencial. Ao concordar com o Ocidente sobre a ilegalidade do ato, mas compartilhando as preocupações de China e Rússia sobre a ineficácia e os perigos das sanções isoladas, o Brasil se posiciona como uma voz independente, capaz de dialogar com ambos os lados e defender o canal da ONU como o único caminho legítimo para uma resolução.
As Raízes da Diplomacia do Itamaraty
A postura do Brasil na ONU não é um improviso; é o resultado de uma doutrina diplomática consolidada ao longo de décadas. Princípios como a não-intervenção em assuntos internos de outros Estados, a solução pacífica de controvérsias e a igualdade entre as nações estão gravados no Artigo 4º da Constituição Federal de 1988 e são o DNA da política externa do país.
Para uma potência emergente como o Brasil, o multilateralismo não é uma opção, mas uma necessidade. É nos fóruns multilaterais, como a ONU, que o Brasil pode ampliar sua influência e defender seus interesses em um palco global dominado por superpotências. Uma postura independente e baseada em princípios, como a demonstrada na crise coreana, reforça a imagem do Brasil como um “global player” construtivo e fortalece sua campanha de longa data por uma reforma do Conselho de Segurança que inclua o país como membro permanente.
Conclusão: A Aposta Brasileira no Poder da Diplomacia
Em um mundo que muitas vezes recorre à retórica da força, a posição do Brasil sobre a Coreia do Norte é uma aposta ousada e consistente no poder da diplomacia. A condenação do teste de míssil é a concessão à realidade do direito internacional; a hesitação em abraçar novas sanções é a fidelidade à sua crença de que a pressão sem diálogo é um caminho para o isolamento, não para a solução.
Esta abordagem pode ser frustrante para aliados que buscam uma frente unida e intransigente, e pode ser vista como idealista por cínicos que acreditam que regimes como o de Pyongyang só entendem a linguagem da força. Para o Brasil, no entanto, é a única estratégia coerente com sua identidade diplomática e suas ambições de longo prazo. É o caminho do meio, a busca pelo equilíbrio em um mundo de extremos, e a afirmação de que, mesmo nas crises mais intratáveis, a porta para a negociação nunca deve ser fechada.
