São Paulo amanheceu com um número que dispensa metáforas: o volume útil do Sistema Cantareira, principal manancial da Região Metropolitana, caiu abaixo de 30% e levou o estado a operar na faixa de restrição. O gatilho foi confirmado por órgãos reguladores e pela companhia de saneamento após semanas de estiagem e volumes de chuva persistentemente abaixo da média. É a primeira vez desde janeiro de 2022 que o Cantareira cruza esse limite técnico, que implica reduzir a captação e acionar um regime de prevenção e contingência em toda a rede que atende a Grande São Paulo. A foto do dia não é isolada: outros sistemas, como Alto Tietê e Guarapiranga, também vêm perdendo carga desde o inverno, e o conjunto dos reservatórios registra o pior desempenho para o período desde a crise hídrica de 2014–2015. A diferença, desta vez, é que a cidade chega a outubro com demanda alta, clima mais quente e expansão urbana que adicionou milhões de metros quadrados impermeáveis ao tabuleiro. CNN Brasil+2CNN Brasil+2
O protocolo de restrição tem consequências práticas já nesta semana. A Sabesp passa a ajustar a operação dos sistemas integrados com menor vazão a partir do Cantareira, reequilibrando a oferta com outras fontes e, sobretudo, modulando pressão noturna em trechos da rede para preservar água nos grandes reservatórios. A Agência Reguladora de Serviços Públicos de São Paulo (Arsesp) homologou o regime de prevenção e contingência, um guarda-chuva que permite manobras operacionais e orienta o consumidor sobre uso racional. Em paralelo, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e a SP Águas comunicaram a mudança de status do Cantareira para a faixa de restrição, com a sinalização explícita de que captações serão reduzidas até que o nível volte a uma zona segura. O governo estadual, por sua vez, já vinha restringindo novas outorgas de captação em bacias críticas. O objetivo é simples: alongar o fôlego do sistema até a retomada das chuvas de primavera. CNN Brasil+2CNN Brasil+2
Quem mora na capital e na Grande São Paulo vai sentir principalmente duas coisas. A primeira é uma pressão mais baixa durante a madrugada e a madrugada estendida, faixa em que as concessionárias costumam realizar o “amortecimento” de rede. A segunda é uma comunicação mais intensa sobre consumo racional, com alertas por SMS, campanhas de mídia e relatórios diários nos canais oficiais. Por enquanto, a companhia reafirma que trabalha para evitar racionamentos clássicos, com rodízio e interrupções programadas, e que o regramento atual prioriza controle de perdas, setorização e redistribuição de cargas entre mananciais. Mas o aviso dos técnicos é de que a situação é dinâmica: se as chuvas de outubro ficarem novamente abaixo da média, a régua da severidade pode subir. CNN Brasil
O quadro meteorológico que explica a queda dos níveis é conhecido. Depois de um período de La Niña que deslocou regimes de precipitação, o Sudeste atravessou meses de chuvas irregulares e episódios de calor atípico, combinação que aumenta a evaporação nos espelhos d’água e eleva a demanda urbana. No Cantareira, que depende de cinco reservatórios articulados, a redução de vazões afluentes desde o outono foi progressiva; o volume útil se aproximou do piso técnico no fim de setembro e cruzou a marca em outubro. A decisão de acionar a restrição não foi política, mas parametrizada: os operadores usam bandas percentuais e curvas de operação definidas com as agências reguladoras para preservar a resiliência do sistema até o início consistente da estação chuvosa. CNN Brasil
Há uma dimensão estrutural que ajuda a entender por que a cidade está mais vulnerável aos soluços de chuva do que há quinze anos. A Região Metropolitana acrescentou áreas impermeáveis em ritmo acelerado; o solo urbano retém menos água e descarrega com mais velocidade nos cursos d’água, dificultando a recarga dos mananciais. Ao mesmo tempo, o consumo residencial por domicílio ficou mais eficiente graças a equipamentos economizadores, mas a base de usuários cresceu e a economia de serviços, com horários estendidos, pressiona a curva noturna. Desde 2014, houve avanço importante em combate a perdas físicas e comerciais, mas as estatísticas oficiais ainda mostram margem para melhoria. O resultado é um sistema menos folgado, que precisa de planejamento fino para atravessar verões secos sem cortes mais drásticos. CNN Brasil
A pergunta inevitável é se haverá rodízio. A resposta honesta, olhando para as posições públicas dos reguladores e para a engenharia do sistema, é que rodízio não é o plano base neste momento, mas tampouco está fora de mesa se a hidrologia piorar. A Arsesp ativou o regime de prevenção para reduzir risco de uma medida desse porte. A Sabesp, por sua vez, vem comunicando que, com as manobras de pressão e a integração com outros mananciais, dá para segurar a maré no curto prazo. O que move o ponteiro, porém, é chuva consistente e reposição dos volumes no Cantareira e no Alto Tietê. Outubro é um mês de transição; se as frentes frias vierem organizadas, a curva pode inflexionar. Sem elas, a régua sobe. CNN Brasil
Um ponto que costuma confundir o debate é a diferença entre “nível do Cantareira” e “nível dos reservatórios da Grande São Paulo”. O primeiro mede a saúde do maior conjunto, que historicamente abastece cerca de metade da população da RMSP. O segundo trata da média integrada dos sete sistemas que compõem o abastecimento metropolitano. Reportagens recentes mostram que, enquanto o Cantareira flerta com o piso, o agregado dos sistemas vem registrando o pior agosto em uma década e setembro com tendência semelhante. Essa distinção importa por uma razão prática: mesmo que o conjunto integrado ainda não esteja em zona crítica, o fato de o maior manancial operar com restrição exige ajustes na rede inteira. CNN Brasil+1
No terreno regulatório, a deliberação mais relevante nos últimos dias foi o aval da Arsesp a um Regime de Prevenção e Contingência específico para a RMSP. Esse instrumento permite calibrar pressão, gerir valas e válvulas setoriais, priorizar hospitais e equipamentos essenciais e publicar planos de contingência por distrito de medição e controle. Ao mesmo tempo, o governo estadual endureceu a política de outorgas, suspendendo novas autorizações de captação para usos não emergenciais em bacias críticas e flexibilizando volumes de outorgas vigentes para reduzir pressão sobre os mananciais. Essas medidas são a “freada de arrumação” que o setor público costuma disparar quando a meteorologia e a hidrologia apertam. Acionista.com.br+1
Na prática cotidiana, há um conjunto de ações que o consumidor pode adotar e que, somadas, têm impacto estatístico. Banho mais curto e com registro fechado ao se ensaboar; torneira desligada ao escovar os dentes e lavar louça; reaproveitamento de água de máquina para lavar calçadas e áreas comuns; conserto imediato de vazamentos, sobretudo os silenciosos, que são os maiores vilões das contas domésticas; descarga com duplo acionamento e vistorias em caixas acopladas. Os técnicos reforçam que, em fase de restrição, cada 1% de economia sustentada na rede equivale a milhares de metros cúbicos preservados diariamente nos reservatórios. Há também o lado comercial e industrial: processos de limpeza a seco, recirculação em torres de resfriamento e ajustes de turnos ajudam a deslocar picos e a atenuar perdas. CNN Brasil
Para além do consumo, a cidade precisa atacar o óbvio que muitas vezes fica de fora do noticiário: perdas na distribuição. Apesar de avanços desde 2015, indicadores públicos ainda apontam perdas totais superiores a 30% em partes da rede metropolitana, somando vazamentos físicos e submedição. Em períodos de restrição, companhias intensificam caça a vazamentos com geofonamento, correlação acústica, setorização e trocas de ramais antigos. O investimento em automação — válvulas controladas remotamente, telemetria de pressão, leitura inteligente de hidrômetros — paga-se rápido quando a água virou variável crítica. E há uma camada social: os bairros vulneráveis sofrem primeiro com pressão baixa; planejamento que prioriza hospitais e escolas precisa vir acompanhado de diálogo com comunidades para mitigar impactos e evitar soluções improvisadas que trazem riscos sanitários. CNN Brasil
A boa notícia, se é que cabe o termo num momento de alerta, é que a RMSP dispõe de boletins diários com dados oficiais, publicados pela própria Sabesp. Ali, é possível acompanhar o volume de cada manancial, as vazões afluentes e defluentes e a síntese do sistema integrado. A transparência é um escudo contra pânico infundado e um aliado para decisões racionais. Para imprensa e para quem formula políticas, esses boletins funcionam como painel de bordo que orienta a narrativa pública e evita conclusões apressadas. A recomendação é checar os números de manhã, comparar com a série histórica e observar tendências semanais, não apenas um dia fora da curva. mananciais.sabesp.com.br
No campo político, a pauta hídrica tende a ganhar centralidade. A gestão municipal e o governo do estado serão cobrados por medidas estruturantes, como ampliar reservação, diversificar fontes e acelerar projetos de reúso e bacias de detenção. Há um componente federativo inevitável: outorgas e regras de vazão mínima em rios interestaduais dependem de pactos com a ANA e com estados vizinhos. Ao mesmo tempo, a privatização da Sabesp — tema que atravessou o debate público recente — volta ao centro quando a discussão é investimento. Em qualquer arranjo societário, a régua do serviço público não pode baixar: segurança hídrica pede metas duras de perdas, expansão de reservação e resiliência climática. CNN Brasil
Outro ponto que deve retornar ao debate é a infraestrutura verde. Em áreas nas cabeceiras e nos entornos dos mananciais, recompor matas ciliares, controlar ocupações irregulares e adotar técnicas de drenagem sustentável — jardins de chuva, pavimentos permeáveis, reservatórios de amortecimento — não são “perfumaria”: são parte da engenharia que garante água na torneira alguns meses depois. A cidade impermeabilizada que se protege de enchentes com mais concreto é a mesma que seca mais rápido quando falta chuva. A lição de 2014 foi essa; o alerta de 2025 repete o recado com outra cara, mas igual urgência. CNN Brasil
Se a curva de chuvas colaborar em outubro e novembro, é possível sair da faixa de restrição sem traumas maiores. Se não colaborar, a régua subirá, e a cidade terá de discutir medidas mais agressivas, do rodízio cirúrgico por distrito a programas de bônus e multa para consumo fora da média. Ninguém gosta de falar nisso, mas planos de contingência bem comunicados, com critérios técnicos, são preferíveis a decisões de última hora. Por ora, vale o mantra dos técnicos: economizar já, monitorar diariamente, torcer pela chuva e preparar o sistema para um futuro cada vez mais exigente. CNN Brasil
Fontes
CNN Brasil — “Escassez hídrica: Cantareira entra em restrição e reduzirá uso d’água”, primeira vez desde 2022 que o sistema cruza a faixa, após volume cair abaixo de 30%. CNN Brasil
CNN Brasil — “Reservatórios de São Paulo têm pior nível para agosto desde 2014”, início do regime de prevenção e contingência com modulação de pressão noturna. CNN Brasil
R7 — “Cantareira vai entrar em faixa de restrição em 1º de outubro, após atingir 29,4%”, detalha gatilho regulatório e percentuais. Noticias R7
Agência Brasil — “Em SP, Sistema Cantareira vai operar com restrição a partir de outubro”, confirma volume útil abaixo de 30% e nova fase operacional. Agência Brasil
Diário SP — “Sistema Cantareira fica abaixo de 30% e estado inicia Faixa de Restrição”, repercussão local do disparo do alerta. diariosp.com.br
Sabesp — Boletim diário dos mananciais, dados oficiais por sistema e síntese do integrado metropolitano. mananciais.sabesp.com.br
Terra — “Reservatórios da Grande SP registram menor nível desde a crise hídrica de 2015; Sabesp descarta racionamento”, contexto histórico da série. Terra
