São Paulo — O prefeito Ricardo Nunes sancionou a lei que autoriza a Prefeitura a desincorporar do domínio público e alienar trechos específicos de vias e áreas municipais. O texto, publicado no Diário Oficial desta semana, é a etapa final de um processo que começou com um projeto focado em uma pequena travessa nos Jardins — a Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, com acesso pela Alameda Lorena, entre a Rua Pamplona e a Avenida Nove de Julho — e terminou ampliado pela Câmara para um pacote que inclui outros endereços de alto interesse imobiliário. Segundo a liderança do governo, a diretriz é leiloar (ou vender por avaliação) áreas que deixaram de cumprir função pública, usando os recursos para projetos habitacionais e obras de infraestrutura. A sanção foi confirmada por publicações oficiais e por veículos que acompanharam a tramitação; a Prefeitura registrou a lei no Diário Oficial com data de 2 de outubro de 2025. Legislação Prefeitura SP+1
A travessa dos Jardins foi a faísca de um debate que há meses opõe prefeitura, urbanistas e moradores. O caso começou como pedido do Executivo para “desincorporar” a viela — hoje sem saída e, segundo a defesa do projeto, sem conexão com o sistema viário — a fim de viabilizar um condomínio de alto padrão. Avaliações iniciais falaram em R$ 16 milhões; em reportagens subsequentes, estimativas chegaram a R$ 16,6 milhões e até cifras superiores, a depender do método de avaliação e das emendas que ampliaram o pacote. Ao longo do percurso, a Câmara adicionou vias em outras regiões (como trechos na Faria Lima), transformando um caso “pontual” em medida com potencial de reconfigurar miolos nobres da capital. InfoMoney+2Metrópoles+2
O que, de fato, a lei permite
O texto sancionado segue a lógica do Projeto de Lei do Executivo 673/2025: desincorporar áreas da classe de “bens de uso comum do povo” e transferi-las para “bens dominiais”, o que juridicamente abre a porta para alienação (venda), permuta ou cessão. A exposição de motivos enviada pelo prefeito à Câmara usa linguagem padrão de direito administrativo e lista plantas técnicas (DGPI 01.318_00 e CASE PS-0183), que individualizam os polígonos a serem alienados, e cita que a operação observa avaliação prévia e interesse público. Em termos práticos, cada trecho precisa ser identificado (por planta e memorial) e valorado antes de qualquer leilão; o produto da venda, por sua vez, tem destinação orçamentária prevista na própria lei. Legislação Prefeitura SP
Nos autos legislativos, a Prefeitura argumenta que há casos em que uma via sobreviveu apenas como “fundos” de empreendimento (após a unificação de lotes privados) e deixou de cumprir sua função de circulação ou acesso a serviços públicos. Nessas hipóteses, sustenta o Executivo, a permanência como bem público gera “custo administrativo” sem contrapartida social e trava investimentos. A oposição e urbanistas, por outro lado, afirmam que o conceito de “função pública” é mais amplo que tráfego de veículos e inclui permeabilidade urbana, possibilidade de circulação de pedestres, segurança e paisagem — atributos indelevelmente coletivos. Legislação Prefeitura SP+1
Como a pauta “cresceu” na Câmara
Revendo o histórico recente, o PL 673/2025 entrou no Legislativo para tratar de um único caso (a travessa dos Jardins) e saiu com um pacote de logradouros após receber emendas. Essa ampliação foi noticiada por diferentes veículos, que citaram pelo menos 12 endereços incluídos no texto final — de um terreno de 140 m² na Faria Lima a travessas de bairro, em formatos que variam entre autorização de venda e concessão. Na votação de 3 de setembro, o projeto foi aprovado em segunda discussão por 29 votos a 11 e seguiu à sanção. Urbanistas e parte do plenário viram na ampliação um “atalho” para privatizar fragmentos valiosos do espaço público; a base do governo defendeu “caso a caso”, com avaliação técnica e contrapartidas. Gazeta SP+1
Após a aprovação, o prefeito e secretários sinalizaram pressa para fechar a operação inaugural (a viela nos Jardins). Nunes chegou a dizer que a venda “se daria automaticamente” com a sanção — frase que, no jargão da política, costuma significar “sem necessidade de nova lei”, mas que ainda depende dos ritos de avaliação e do formato do certame (leilão, concorrência ou venda direta autorizada, conforme o caso). Esse timing foi noticiado pela imprensa de economia com base em declarações do prefeito. InfoMoney
Quanto vale o que está sendo vendido
A resposta curta: depende de avaliação e de mercado. Para a travessa dos Jardins, os números mais citados vão de R$ 16 milhões a R$ 16,6 milhões. Mas a conta muda se a Prefeitura, por exemplo, atrelar a alienação a contrapartidas urbanísticas (alargamento de calçada, passagem pública em cota específica, doação de área para habitação) ou se o edital exigir obrigações ambientais e de mobilidade. Em outras palavras, o valor não é só a metragem multiplicada pelo preço do entorno; há um “estojo regulatório” que pesa tanto quanto a gleba, e que pode reduzir (ou aumentar) o potencial de adensamento do futuro projeto. Ao ampliar o pacote para outros endereços, a Câmara também criou assimetrias: alguns trechos valem mais pelo efeito “endereço”; outros, pelo potencial de “amarrar” a fruição pública a um projeto privado. Metrópoles+1
O argumento do governo: arrecadar e ordenar
O eixo discursivo do Executivo municipal se apoia em dois pilares. Primeiro, arrecadar com ativos “ociosos” para financiar moradia e obras. Segundo, ordenar a malha urbana retirando do inventário municipal “ruas mortas” ou travessas residuais, que perderam função de circulação. Secretarias envolvidas (Urbanismo, Subprefeituras e Fazenda) sustentam que cada caso passa por análise técnica e jurídica, com consulta às plantas, verificação de serviços públicos e avaliação de impactos. Em releases e respostas à imprensa, a Prefeitura também lembrava que a travessa dos Jardins “não se conecta a outras vias” e, portanto, teria impacto viário nulo, argumento repetido desde a primeira votação. Metrópoles
As críticas: precedente, “efeito portão” e função social
Do lado crítico, urbanistas alertam para o “efeito precedente”: ao provar que é possível vender fragmentos bem localizados, cria-se incentivo para transformar passagens e vielas em acessos privados — o chamado “efeito portão”, em que áreas antes abertas à vizinhança viram guaritas e muros. A crítica mais substantiva é que espaço público não se mede só por pneus; uma viela pode ser rota segura para pedestres, garantir passagem de serviços (coleta, manutenção), ventilação entre quadras e até uma sombra de árvore estratégica num bairro mineralizado. Na leitura de professores e entidades, vender esse tipo de ativo exige um teste rigoroso de função social que vá além da fotografia viária. Metrópoles
Há ainda a questão da valoração. Como se forma o preço de uma área pública “micro” no coração de um bairro caro? A depender do método (comparativos de mercado, potenciais construtivos, custo de oportunidade), o resultado muda muito. Vereadores contrários pediram parâmetros de avaliação e transparência de laudo para evitar subpreço. O governo respondeu que o rito padrão da Administração — avaliação oficial e controle dos órgãos internos — será respeitado, e que a lei obriga a fundamentação dos atos. Mas críticos cobram contrapesos adicionais, como direito de passagem pública (servidão de pedestres), obrigação de fachada ativa e cotas de doação para parques e habitação. Gazeta SP
O que acontece agora na prática
Com a lei publicada, a bola está com a Prefeitura para abrir os processos de avaliação e definir o modelo de venda dos primeiros ativos (no caso dos Jardins, e eventualmente nos demais endereços). O passo a passo inclui: delimitar os polígonos com base nas plantas anexas, emitir laudos de avaliação, submeter à Procuradoria, preparar minuta de edital e publicar o certame. Em paralelo, haverá consulta a utilities (água, luz, telefonia, gás) para mapear interferências, e checagem de cadastros de zeladoria. A depender do local, o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU) e o Conselho Gestor de Operações Urbanas podem ser acionados para opinar sobre contrapartidas. Legislação Prefeitura SP
No caso dos Jardins, a incorporadora interessada adquiriu — ao longo dos últimos anos — todas as casas da antiga vila; as demolições ocorreram e o canteiro aguarda o desfecho da travessa para avançar. Vídeos e reportagens mostram o vazio urbano e o acesso hoje controlado por tapumes. Para o investidor, tempo é custo; para a cidade, tempo é oportunidade: o espaço entre a sanção e o leilão é a janela para definir condições urbanísticas que evitem um enclave e devolvam algo à rua — um recuo ajardinado, uma passagem pedonal, mobiliário urbano, iluminação, ou até uma servidão de pedestres em horários amplos. YouTube+1
A leitura política
A sanção ocorre num momento de hiperexposição do prefeito: depois de embates sobre mobilidade, zeladoria e privatizações, Nunes tenta se apresentar como gestor “pragmático”, capaz de destravar empreendimentos e monetizar ativos. A mesma prefeitura, meses atrás, trabalhava leilões de Cepacs e programas de concessão; agora, opera no microfatiamento de solo. Os dois movimentos têm a mesma gramática: transformar estoque público em recurso para obras — e inflar a carteira de investimentos no pós-eleição municipal. Em entrevistas recentes, o prefeito condicionou novos certames de títulos à “estabilidade econômica”, sinalizando que escolherá brigas com alto potencial arrecadatório e risco jurídico calculado. CNN Brasil
A oposição, por sua vez, mira o “sinal” enviado: vender uma via em área nobre, para um empreendimento de altíssima renda, enquanto a periferia carece de calçadas básicas, pode ser lido como prioridade invertida. O governo retruca com a destinação orçamentária — os recursos, diz, ajudarão a financiar moradia social e infraestrutura — e que cada caso precisa ser lido pelo teste de função. O debate deve continuar em comissões e audiências, mesmo após a sanção, quando saírem os primeiros editais. Gazeta SP
Impacto urbanístico de médio prazo
Se a estratégia de alienações “cirúrgicas” prosperar, São Paulo pode inaugurar uma nova fronteira regulatória: a dos “microativos urbanos”. Em vez de grandes glebas e concessões integradas, o município passa a vender (ou conceder) centenas de pequenos fragmentos que, somados, podem mudar a morfologia de bairros inteiros. É um caminho com prós e contras: pró, porque transforma espaços residuais em projeto e arrecadação; contra, porque eleva o risco de “condominização” do espaço público, com enclaves de luxo substituindo rotas informais e porosidade entre quadras.
Para minimizar riscos, especialistas sugerem três filtros: cartografia fina (saber exatamente o papel da área na rede de pedestres e serviços), contrapartidas urbanísticas (passagem, fachada ativa, permeabilidade), e monitoramento pós-obra (garantir que o prometido foi entregue e permanece aberto). Se os editais trouxerem esse pacote, o precedente tende a ser menos controverso. Se não trouxerem, a pauta “se espraia” e o debate volta em dobro. Metrópoles
Transparência e controle social
No curto prazo, todo o processo estará sob holofotes. A transparência ativa — publicar plantas, laudos de avaliação, pareceres e minutas — é o antídoto mais simples contra suspeitas de subprecificação ou captura regulatória. O Diário Oficial e o portal de legislação municipal hospedam as bases legais e, em geral, também os anexos técnicos. Sem isso, a conversa pública regride ao ruído. Para além de publicar, a Prefeitura pode formar um repositório único de alienações, com histórico, valores e contrapartidas — o que facilita auditorias independentes e prestação de contas a cada venda. Legislação Prefeitura SP
O que observar nas próximas semanas
Três marcos vão dizer se a lei nasce para ordenar ou para incendiar a agenda urbana: 1) a primeira avaliação oficial da travessa dos Jardins (o número exato, o método e as premissas); 2) o formato do edital (se haverá contrapartidas de fruição pública e desenho urbano); 3) a lista final de áreas a alienar no “lote 1” (quais trechos entraram de fato e em que ordem). Paralelamente, vale acompanhar se o Ministério Público e a Defensoria acionam controle concentrado (ação civil pública) questionando o interesse público e o teste de função social dos casos mais sensíveis. Até aqui, o que há é lei sancionada, enunciado de prioridades e um primeiro caso altamente simbólico. O restante é execução — e, nela, o diabo mora nos detalhes. Diário Oficial+1
Fontes
Legislação Municipal de SP — Projeto de Lei do Executivo 673/2025, que desincorpora trechos do domínio público e autoriza alienação; exposição de motivos com plantas técnicas. Legislação Prefeitura SP
Diário Oficial do Município — publicação da lei sancionada (registro com data “aos 2 de outubro de 2025”). Diário Oficial
Metrópoles — aprovação em 2ª votação e ampliação do projeto para além da travessa dos Jardins; debate sobre impacto urbano. Metrópoles+1
Gazeta de SP — relação de ruas/áreas incluídas no pacote que seguiu à sanção (29 a 11). Gazeta SP
InfoMoney (Estadão Conteúdo) — declaração do prefeito de que a venda da travessa se daria “automaticamente” após a sanção. InfoMoney
Reportagens e vídeos de contexto — imagens da área e histórico recente da vila demolida no entorno da Alameda Lorena. YouTube
Fontes
Legislação Municipal de SP — Projeto de Lei do Executivo 673/2025, que desincorpora trechos do domínio público e autoriza alienação; exposição de motivos com plantas técnicas. Legislação Prefeitura SP
Diário Oficial do Município — publicação da lei sancionada (registro com data “aos 2 de outubro de 2025”). Diário Oficial
Metrópoles — aprovação em 2ª votação e ampliação do projeto para além da travessa dos Jardins; debate sobre impacto urbano. Metrópoles+1
Gazeta de SP — relação de ruas/áreas incluídas no pacote que seguiu à sanção (29 a 11). Gazeta SP
InfoMoney (Estadão Conteúdo) — declaração do prefeito de que a venda da travessa se daria “automaticamente” após a sanção. InfoMoney
Reportagens e vídeos de contexto — imagens da área e histórico recente da vila demolida no entorno da Alameda Lorena. YouTube
