A União Europeia prepara uma guinada prática na política de inteligência artificial. O novo plano, batizado de “Apply AI”, mira reduzir a dependência de modelos, plataformas e infraestrutura dos EUA e da China e acelerar o uso de IA de código aberto e soluções europeias em setores críticos como saúde, defesa e manufatura, com verbas iniciais de programas existentes somando cerca de €1 bilhão e foco especial em adoção em administrações públicas. A apresentação formal está prevista para esta semana em Bruxelas, e o texto circula em rascunho entre gabinetes e stakeholders desde as primeiras horas deste domingo, 5 de outubro. Financial Times
A iniciativa nasce sob o signo da soberania tecnológica. Em síntese, a Comissão avalia que a Europa corre riscos estratégicos quando depende de serviços de IA e de computação fora do bloco, sejam eles infraestruturas de modelo, camadas de software ou serviços de nuvem. O documento enfatiza a necessidade de plataformas e ferramentas “made in Europe” para aumentar resiliência, segurança institucional e competitividade industrial. A proposta também explicita um impulso ao ecossistema de startups e à adoção de IA generativa aberta em governos, para destravar produtividade e criar escala real para fornecedores europeus. Financial Times
O que muda na prática
O “Apply AI” não é um regulamento novo; é um plano de implementação que se apoia em instrumentos já em vigor — AI Act, Digital Europe Programme, Horizon Europe e EuroHPC — para canalizar dinheiro, prioridade e governança a projetos com aplicação imediata. No coração do desenho está a compra e o teste de soluções em órgãos públicos, em uma lógica de “cliente-âncora” que dá tracionamento de mercado aos fornecedores locais. Parte desse caminho já vinha sendo pavimentada por chamadas como GenAI4EU e GenAI para Administrações Públicas, com pilotos replicáveis e exigência de cofinanciamento por estados e municípios, criando redes de adoção e padronização entre países. Digital Strategy+2b2match.com+2
No plano industrial, o foco recai sobre cadeias estratégicas. A Comissão quer IA aplicada em manufatura avançada, cadeias de saúde, energia e defesa, com metas de integração em comando e controle e ganhos de eficiência contra desperdícios e gargalos de mão de obra. Além de reduzir o lock-in tecnológico, o roteiro busca sustentar uma base de fornecedores europeus de modelos, frameworks e serviços que possam competir globalmente sem ceder dados sensíveis a jurisdições externas. Financial Times
Por que agora
A janela política ajuda a explicar o timing. Em 2025, o bloco ajusta a transição para a aplicação do AI Act e discute um “Digital Omnibus” para simplificar regras de dados, cibersegurança e IA. Ao mesmo tempo, a Comissão elevou o tom sobre soberania digital e autonomia estratégica, tema que ganhou tração desde o choque geopolítico dos últimos anos e o avanço acelerado da corrida por capacidade computacional e modelos fundacionais fora da Europa. O “Apply AI” aparece como a perna operacional desse discurso, com planos e rubricas para usar IA agora — primeiro no setor público, depois em clusters industriais. Digital Strategy
No entorno do anúncio, Ursula von der Leyen vem defendendo estratégias “AI first” em áreas emblemáticas como veículos autônomos, reforçando que a Europa precisa pilotos urbanos, normas claras e escala industrial para não ficar à margem de uma transição tecnológica que reescreve a competitividade do continente. Em paralelo, ela anunciou que a Comissão vai propor em 2026 um regime regulatório uniforme para startups — o chamado “28º regime” — para destravar expansão transfronteiriça na UE. O fio condutor é nítido: cortar atritos e acelerar a adoção. Reuters+1
Dinheiro e instrumentos
O rascunho do “Apply AI” indica a mobilização de €1 bilhão em linhas já abertas ao longo de 2025 e 2026, principalmente Digital Europe e iniciativas que a Comissão vem agrupando sob o chapéu da GenAI4EU. Esses recursos funcionam como gatilho: financiam pilotos, compras públicas de inovação e infraestrutura de dados para casos de uso replicáveis. Ao exigir cofinanciamento de autoridades nacionais e locais nos projetos de administração pública, a UE força compromisso político e cria efeito rede entre cidades e estados-membros, condição básica para escalar. Financial Times+2Digital Strategy+2
A prioridade de código aberto aparece como elemento de redução de dependência e auditabilidade. Em governos, onde transparência, segurança e custos são sensíveis, a Comissão enxerga vantagens em modelos e pilhas abertas, inclusive para mitigar riscos e reaproveitar componentes entre países. Essa diretriz dialoga com as chamadas recentes voltadas a GenAI em administrações públicas, que pedem soluções “escaláveis e replicáveis”, com documentação, governança de dados e métricas de impacto claras desde o dia um. b2match.com+1
O papel dos governos como cliente-âncora
A estratégia assume que governos são o primeiro grande cliente. Em vez de esperar difusão orgânica, o plano puxa a demanda por meio de chamadas temáticas e centralização de curadoria de casos de uso. Em termos práticos, isso significa RFPs transnacionais para temas como assistência virtual segura, processamento de documentos públicos, detecção de fraude, fila e triagem no sistema de saúde e gestão de ativos e manutenção preditiva em infraestrutura. A lógica é comprar junto, padronizar, medir e reusar, reduzindo a fragmentação que historicamente trava a escala europeia. Financial Times
No campo defesa e segurança, a menção explícita a comando e controle revela a ambição de integrar IA a sistemas críticos, da consciência situacional ao planejamento operacional. A mensagem política é direta: IA não é só produtividade; é capacidade estratégica, e não tê-la em mãos europeias cria superfícies de risco inaceitáveis em cenário de tensões crescentes. Financial Times
Relação com o AI Act e o “Digital Omnibus”
O AI Act define regras de risco, obrigatoriedades e sanções; o “Apply AI” trata de uso e adoção. Para evitar que a implementação regulatória vire um freio involuntário, a Comissão abriu em setembro uma chamada de evidências para simplificar e harmonizar trechos de dados, cibersegurança e IA no chamado “Digital Omnibus”. A leitura implícita é que clareza regulatória precisa vir junto com trilhas de adoção e financiamento. O pacote, portanto, casa compliance com execução. Digital Strategy
Organizações da sociedade civil têm cobrado ritmo na implementação do AI Act e atenção a direitos fundamentais. O “Apply AI” será testado também por esse prisma: governança de dados, não discriminação, explicabilidade e acesso a mecanismos de contestação em serviços públicos movidos a IA. A Comissão sinaliza que modelos e pilhas abertas podem favorecer auditoria e controle social, mas o desenho dos pilotos e a qualidade de métricas é que dirão se a promessa se sustenta. Biometric Update
Soberania digital e competição global
A Europa chega a 2025 sob pressão por capacidade computacional e talento. Enquanto hiperescala norte-americana dobra investimentos e a China empilha supercomputação e fundos estatais, a UE tenta equilibrar pacto regulatório, fomento e demanda pública. O “Apply AI” é o braço de execução dessa ambição: em vez de discutir apenas como regular, o bloco quer como comprar, implantar e escalar. A meta explícita é quebrar dependências e disputar produtividade com uma pasta europeia de IA que seja competitiva e segura, com ganhos reais para cidadãos e empresas. Financial Times
Essa agenda conversa com discursos recentes de alto nível sobre carros autônomos, startups e cadeias críticas, em que a Comissão pede pilotos paneuropeus e regras comuns para que inovação não se perca em 27 versões de burocracia. O recado aos estados-membros é que consórcios transnacionais e padrões compartilhados valem tanto quanto o cheque. Reuters+1
O que pode dar errado
Quatro pontos de fricção aparecem de saída.
1) Capacidade de execução. Mesmo com €1 bi redirecionado, compras públicas de inovação exigem competências raras em especificação técnica, avaliação de risco e gestão de contrato. Estados-membros com menos estrutura podem perder o trem. O antídoto é centralização parcial, catálogos comuns e apoio técnico da Comissão para nivelar capacidades. b2match.com
2) Disputa por talento e compute. Sem resolver acesso a GPU, energia estável e engenharia de plataforma, pilotos viram provas de conceito que não saem do papel. Aqui, o casamento com EuroHPC e programas de cloud federada é o passo crítico. Cláusulas de portabilidade e multicloud podem reduzir lock-in mesmo quando houver fornecedores não europeus na pilha. Financial Times
3) Governança e direitos. A pressão por entrega rápida não pode relaxar salvaguardas do AI Act. Métricas de viés, impacto em grupos vulneráveis e auditoria independente precisam ser obrigatórias nos pilotos públicos, sob pena de erosão de confiança. A cobrança já está na mesa e deve aumentar à medida que casos de uso afetem serviços sensíveis. Biometric Update
4) Fragmentação política. O sucesso depende de coalizões entre países e cidades. Projetos que exigem cofinanciamento local podem emperrar em contextos fiscais severos. A Comissão terá de destravar consórcios e equalizar contrapartidas para evitar um mapa de vencedores previsíveis e perdedores crônicos. ERRIN
Sinais de curto prazo a acompanhar
Três termômetros indicarão se o “Apply AI” saiu do papel.
Pilotos em governo com escala real. Acompanhar as listagens de projetos selecionados nas chamadas de GenAI para Administrações Públicas e GenAI4EU, verificando entregáveis, prazos e licenciamento. Quanto mais open by default, maior a chance de reuso e de efeito rede. Digital Strategy+1
Arranjos de nuvem e dados. Ver se os pilotos adotam arquiteturas portáveis, data lakes interoperáveis e governança alinhada ao European Data Space, escapando de dependências opacas. O discurso de soberania cobra coerência técnica.
Alinhamento com o AI Act. Monitorar guias de conformidade, sandboxes regulatórios e cronogramas de implementação do AI Act. A Comissão abriu uma chamada de evidências para simplificar e harmonizar trechos no Digital Omnibus; o resultado prático dirá se a complexidade foi reduzida para quem deseja implantar. Digital Strategy
O que significa para o Brasil e a América Latina
Embora desenhado para a realidade europeia, o “Apply AI” ecoa no Sul Global e entre gestores públicos brasileiros que buscam pilotos com governança e código aberto. O modelo de compras em bloco, padronização intergovernamental e exigência de cofinanciamento com métricas é referência útil. A diferença estrutural está na disponibilidade de fundos e na capacidade de coordenação supranacional; ainda assim, catálogos federais e acordos de cooperação entre estados e municípios podem replicar a lógica de escala e reuso que a UE persegue.
Próximos passos
A Comissão planeja apresentar o “Apply AI” nesta terça-feira, abrindo a fase de mobilização de projetos e ajustes de chamadas. Espera-se um roteiro de 12 a 24 meses para pilotos, avaliação de impacto e expansão em ondas, com painéis de indicadores e relatórios públicos de desempenho. No curto prazo, a novidade mais tangível deve ser a seleção de consórcios para administrações públicas, seguida por casos de uso industriais com clusters e parcerias público-privadas. Financial Times
A UE comunica que a prioridade é “usar” IA em problemas concretos, de fila em hospital a inspeção de infraestrutura, e alimentar a indústria local com demanda previsível. O sucesso, porém, dependerá da qualidade dos entregáveis, da abertura do stack e da capacidade de replicar rapidamente o que funcionar.
Fontes
Financial Times — rascunho e pontos centrais do “Apply AI”; Comissão Europeia — iniciativas GenAI4EU e chamadas para Administrações Públicas; Comissão Europeia — consulta “Digital Omnibus”; Reuters — falas de Ursula von der Leyen sobre veículos autônomos e regime para startups; Times of India e Devdiscourse — repercussões do plano. Devdiscourse+7Financial Times+7Digital Strategy+7
